A Leveza do Meu Ser

Gosto do nome Tomás e, quase sem dar por isso, deixei que ele tomasse conta de mim tornando-se no meu alter-ego quando escrevo. Um nome que fui buscar a uma das minhas personagens favoritas, protagonista do célebre romance de Milan Kundera, escritor com cuja escrita vibro e me identifico.
Gosto também de ler António Lobo Antunes. Como tanta gente, fascinam-me as suas crónicas, a maneira como imagina e descreve factos ou sentimentos, a forma escorreita e original como escreve. Algumas das histórias que se seguem foram escritas indo atrás da sua maneira de brincar com as palavras, num exercício que começou como mera brincadeira e sem qualquer pretensão de se lhe comparar.
Wolf tem por isso uma ligação evidente ao escritor português; mas também pelo Lobo/animal e por tudo o que ele representa no imaginário de cada um de nós.

«O lobo é a força da alcatéia e a alcatéia é a força do lobo» (Joseph Rudyard Kipling, escritor e poeta britânico, 1865/1936, em «O Livro da Selva»)

Tomás Wolf

terça-feira, dezembro 23

Sonho é vida em liberdade

Em sonhos somos heróis ou vilões, fracos ou fortes, em sonhos somos quem queremos e não temos coragem para ser acordados, afastamos-nos de quem nos faz mal ou não gostamos, vivemos em segredo as fantasias e as aventuras de que a moral e a consciência não nos libertam quando despertos, a sonhar rimos, choramos e cantamos sempre melhor do que acordados.

Em sonhos somos mais verdade, mesmo quando essa verdade nos assusta ou deixa tristes, porque tantas vezes também nos faz acordar felizes e confiantes.

Em sonhos amamos mais e melhor, somos ousados, traímos ou trocamos afectos em segredo cúmplice e amoral, perseguimos finais de arco íris em busca de potes de ouro que acordados sabemos não existirem.

Sonhar é como uma porta que se abre para uma vida em liberdade, em sonhos somos capazes de nos perder sem rumo e sem limites em tempos que se misturam, somos um passado que nunca foi e trazemos o futuro ao presente, vivemos a criança que nunca revelámos para descobrir afinal que ela ainda dura em nós.

Sonho é esperança sem matéria mas com alma, uma alma dotada de um coração imenso capaz de se libertar sem ansiedades nem restrições para se entregar à vida.

E é através dessa capacidade para sonhar que descobrimos o quanto é bom viver... para poder sonhar; e o quanto é mau sonhar que não se quer acordar.

quarta-feira, dezembro 10

Foi a tarde mais doce de todas as tardes por inventar


Abracei-te, beijei-te a cara e os cabelos, os meus lábios rondaram-te as pestanas e as bocas não tardaram a encontrar-se depois da rotação da tua cabeça.

Em fundo, o suave barulho das ondas, enquanto brincávamos sobre o que as velhas que nos espreitavam estariam a comentar ou no quanto te escandalizava a loucura do gesto que nos levara até ali, aquele lugar, momento e beijo.

Esquivaste-te sem convicção ao movimento das minhas mãos,

(«escuta-escuta», sussurravas tu tentando interromper uma ousadia que te seduzia)

e esses mesmos toques foram certamente a razão para, dias depois, nos deitarmos, pele com pele, boca com boca, sexo com sexo.

E nesse final de tarde, rebolando-te na cama beijei e possui cada pedaço de ti. Fomos amantes desbragados nas mais diversas formas físicas mas apenas numa de sentir a o mais profundo e secreto de nós.

Quisemos estar e desejámo-nos.

Falar-te-ia hoje do que senti, se não repetisse o que então sentiste. No instante em que li no teu olhar o que a tua inconsciência te impedia de dizer, mergulhei por essa pinta do teu olho até alcançar a tua alma e beijei-a como amante.

Como alguém que te amou sem se assustar nem dos sentimentos, nem das palavras, por os saber conscientes, verdadeiros e apaixonados. E não, não fruto de um momento de insanidade, ou de paixão, ou de desejo ou até mesmo por mera luxúria.

Separarmo-nos foi a mais brutal das sensações. A noite chegou e o vazio instalou-se. Preencheu-se de afectos roubados, dos que ficaram por partilhar, de beijos e de palavras que não chegaram a acontecer

(sim, sei que sou um tagarela mesmo quando me deveria conter, mas o tempo escasseou sempre e tanto ficou por dizer...),

cheguei a ausentar-me de mim e quase tive vontade de me ausentar de ti. Teria feito se o conseguisse e me soubesse capaz. Lágrimas afloraram, falei sozinho, escrevi e invadi-me...

Uma e outra vez. Sempre com o mar a servir de pano de fundo. O mar que tanto gostamos de ver, sentir e respirar. O mar que foi dando forma a uma ideia. Eras a onda e eu a areia. A onda vinha, enérgica e revolta, espraiava-se mansa e docemente na areia até se entranhar totalmente em mim...

E então eu libertei-me.

sexta-feira, julho 13

Gosto de ti... por tudo o que de bom me fazes sentir

Não sei porque gosto de ti. Não sei se gosto de ti ou se odeio, não sei se gosto apenas da ideia de gostar de ti

(ou de te odiar),

mas, se é apenas a ideia de gostar de ti, por que é que ela me faz pensar tantas vezes em ti, não me afastar de ti ou, pior do que tudo, correr para ti quando te lembras de mim?

Não serás o melhor dos meus amantes; não tocaste nem pareces saber tocar todas as cordas que me fazem vibrar enquanto mulher e amante, mas, quando estamos juntos e a minha pele se arrepia na tua, de nada me lembro na ária feita de vulcão e lava, no suspiro gritado com que primeiro me libertas e depois me confundes...

... para logo voltar a odiar-te odiando-me, por amar a música com que sem te esforçares me encantas, pela arrogância, falta de atenção e egoísmo que em ti tanto me atrai e faz depender este meu coração de um gesto teu, de uma palavra tua que nunca acontecem.

Muitos houve que me desejaram e amaram mais e melhor do que tu, desses, nem os momentos bons conservo ou importam, porque nunca me interessei em os conhecer tão bem quanto o que aprendi e apreendi na fragilidade dessa tua máscara que, sem entender, me impede de permanecer nos teus braços naqueles momentos em que desejo o tempo se imobilize, nessas poucas horas livres que encontras para nós

(e nunca ouvi um nós vindo de ti...)

Desconforta-me saber que te aproveitas da entrega excitada que não consigo controlar perante o teu desinteresse, do fascínio deslumbrado com que sigo os teus gestos seguros no restaurante, o respeito educado de quem te cumprimenta e o olhar de admiração que recebo, a energia que de ti transborda quando falas dos teus anseios profissionais, essa energia que eu tanto desejaria reservasses para amar, mimar e desejar-me, fosse em gestos, em palavras, em atitudes...

De ti, em ti, não há promessas, nem projectos em que eu entre, o futuro será aquele onde me quiseres arrumar na tua vida. Se desejares acomodar-me-ei complacente com a mesma facilidade com que me tens e te serves, serei tua amante quando te apetecer, tua companhia quando desejares, um dia... quem sabe..., talvez consiga representar para ti mais do que essa ideia de mulher que dominas e que eu sei, tanto te agrada fazê-lo.

Confessaste até, nas poucas palavras sobre nós que trocámos, o quanto isso te faz também sentir confiante, revelaste-o a mim, eu que sei servir apenas para alimentar essa tua volubilidade permanente.

Mas deixarei que assim seja sem realmente saberes o quanto te odeio, desdenho e desprezo, mesmo quando julgas que te amo e idolatro, numa raiva surda que cresce ao ritmo com que descubro e exploro cada uma das tuas fraquezas, cada uma das tuas necessidades em me humilhar e fazer depender de ti, tal como me repugna a tua inteligência indolente e autoritária que esconde o ser inseguro, medroso e incapaz que realmente és, o homem por quem me apaixonei e um dia tolamente ansiei.

Sei que conseguirei fazer com que me ames; não para te ensinar o sentimento, manipulando antes a minha presença cómoda até te corromper como um hábito do qual dependas e, depois... bem, depois, desinteressar-me-ei de ti na esperança de que sofras com a ausência do vício com que te amestrei!



*

«— Quem verdadeiramente és tu Tomás?» — O dedo dela desceu devagar, ziguezagueou entre os pelos do peito até se espetar ameaçadoramente na zona logo acima do umbigo — «És um sedutor barato, um homem sensível ou simplesmente alguém que usa palavras bonitas para se aproveitar da fragilidade das mulheres?»

Ele sorriu na direcção da unha cuidadosamente tratada, pintada, lentamente foi erguendo o olhar ao longo do corpo deitado na cama ao seu lado, cabeça apoiada na mão esquerda, cabelo escorregando entre os dedos e a curva do braço permitindo vislumbrar um seio repousando indolente na ponta da almofada.

Os olhos encontraram-se e Tomás ergueu a mão para afastar-lhe o cabelo do lado livre da testa, revelando o sinal escondido, deixou que os dedos encontrassem outro na nuca e acabassem a viagem na marca do peito, que tantas vezes o fizera interrogar-se de como fora ali parar. Essa trilogia era um gesto repetido que sabia arrepiá-la, um momento de prazer partilhado que o seduzia tanto quanto a pele dela crescendo num arrepio ao longo da jornada, fazendo-a morder o lábio, fechar os olhos e suspirar em intensa volúpia.

Mas não desta vez em que a mão aberta lhe cerrou a boca

«— Não digas nada. Não quero saber nem me interessa...»,

para logo depois lhe revelar pelo puxar da sua cabeça que o queria por cima em mimo e abraço, protector ou de desejo, que a levasse a trocar os pensamentos pelo deleite, não sem antes

«— As conversas de cama são coisas passageiras; por isso, se o assunto é sério, nunca se fala na cama».

Tomás aproveitou o movimento para fazer rebolar os corpos e obrigar o dela a ficar por cima do seu. Sabia o quanto isso a deixava vulnerável, forçando-a a ficar e fixar o olhar a um palmo de distância do seu, pressentindo-lhe o desconforto de sentir-se tão exposta, o peito quente compassando a respiração enervada que se debatia em movimentos de fuga que o abraço dele cerceava

«— O que é que tu ganhas com isso? O que queres provar? Tens a certeza que no final não és tu quem sai magoada?»,

a irritação em crescendo até ao limiar do grito, o dele, quando as unhas afiadas dela quase o elevaram do colchão num gemido de dor que noutras alturas tanto a excitava.

«— O que é que te interessa? Aliás nem percebo porque te contei... o que vais pensar de mim.. raios!»

«— Mas porque é que agora te importa tanto o que eu possa pensar?» achou Tomás daquele corpo tão frágil depositado ao lado do seu, por vezes imerso em tanta determinação e raiva de si mesmo, fintando-o agora em desafio, perdido na necessidade de se violentar numa confusão de pensamentos e sentimentos diversos... ou simplesmente de ser desejado e amado enquanto mulher para se afirmar, para se estruturar ancorada nessa atenção, até fortalecida se libertar e seguir o seu rumo. Um rumo que Tomás aceitara passar por ele, como porto de passagem de uma jornada construída sobre algumas desilusões e desencantos, se calhar extrapolados no receio das exigências a que um fundear mais longo sempre obriga. Umas vezes presa a fantasmas criados pelo medo do assalto à mais íntima das fragilidades que a alma guarda, outras perseguindo perfeições que a exigência desculpa, sorvendo o que de bom cada embarque proporciona e construindo de retalhos um imaginário perfeito que a faz manter em cada porto uma amarra quase vampiresca, de onde suga cada necessidade sem a preocupação de ter que erotizar as dificuldades que geralmente afundam as relações.

E depois... depois e sempre o acaso, o baralhar do destino, a partida pregada por sentimentos que não se procurando surgem sem aviso e sem explicação e nos deixam com a vontade indefesa. No sentir recíproco pode estar a paz mas pode também não estar a chama que mantém muitos desafios acesos, os que não se entendem, os que se estabelecem raptando os sentidos e saqueando a alma apenas num sentido, trazem a insegurança e o sofrimento, logo depois podem dar lugar ao ódio e à vingança. Ténue será sempre o limite que estabelece essa fronteira e mais frágeis ficam os seres que se deixam levar pelo impulso que apenas serve a desculpa não confessada de manter o laço que nos liga aquele cais.

«— Porque é que te importa tanto o que eu possa pensar?» E porque é que realmente o incomodava? Naquele instante, entre lençóis suados e desalinhados, as duas silhuetas recortadas pelo amanhecer que anunciava o fim da madrugada, sentiram que o desejo de corpo não satisfaz, não descansa a alma e pode vandalizar o coração. E que todos os enganos e promessas por ambos jurados se poderiam esboroar ao ritmo com que se ameaça erguer algo novo, mais maduro, mais adulto e terrivelmente mais exigente por sobre todas as verdades confessadas em dias de descompromisso, em que o prazer da companhia e do entendimento contemplou as vontades da carne e da paixão. Como tudo se confunde e nos deixa de novo vulneráveis, como os seres se podem baralhar perante a ameaça dos sentimentos!

«Vou-me embora! Antes que se estrague a amizade... ou se instale a dependência»

Não houve um bater de porta, o som de um elevador ou do descer das escadas, o ruído de um carro a afastar-se. Tomás sentiu que lhe morriam uma a uma as palavras que tinha para lhe responder. Talvez não fizessem sentido. Ou talvez as pudesse dizer outro dia. Ela voltaria. Não pelo que faltara dizer, antes pelo que ficara por viver...

quinta-feira, maio 10

Obsessão


Acordo com os teus dedos escorregando pelas minhas costas a caminho das nádegas e, quando me volto, pressinto pelo teu olhar desperto que há muito eles devem vaguear por lá à espera de um sinal de resposta do meu corpo

(e eu a imaginar que era um sonho...),

para logo sorrir sonolento e meigo nos teus lábios que se aproximam, escolhendo o arrepio que a tua língua provoca ao passear pelos meus.

Tens uns olhos doces e marotos que parecem amêndoas, brilhando para mim umas vezes gulosos de desejo, outras ternos de esperança e paixão, não sei o que te dizer nas alturas em que só me apetece mergulhar a boca em ti e repousar a cabeça no teu peito quando me enlaças.

Mesmo sem o poder ver, adivinho que o teu olhar vagueia em pensamentos enquanto me afagas os cabelos, mas o meu preenche-se com o bico negro e carnudo do teu seio que já rola suave entre os meus dedos.

Depois, sei que nos vamos voltar a amar até que exaustos e suados nos deixemos descair para outra dimensão ou que a fome nos empurre para a vontade de saciar outras vontades do corpo e eu, já sem tempo para ler ou escrever, até nos poucos momentos em que me deixas adormecer não descanso porque sonho contigo, com as tuas mãos, boca, cheiro e sabor, com a voz e até mesmo com as palavras que instantes antes sussurraste junto do meu ouvido e teimam em não fazer sentido!

«— Onde isto nos vai levar Tomás? Começo a sentir saudades do tempo que passa...»

Eu já não me recordo como e onde te conheci, como chegaste até mim e eu entrei em ti, se calhar até foste tu a entrar primeiro tomando conta do meu pensamento e dando o corpo às mais secretas fantasias

«— Tira uns dias Tomás, tira uns dias e prometo-te o paraíso e os trópicos sem sairmos daqui...»

e cumpri, tirei, fiquei e deixei-me envolver enquanto me invadias deleitando a tua sede e satisfazendo a minha fome de volúpia.

Há instantes em que o prazer me faz pensar que tudo não passa de um sonho, outras até em que me julgo em delírio, depois sei que o calor que sinto não é febre mas o sol que teima em massacrar a janela do quarto, torna pesado e quente o ar que o calor dos nossos corpos em movimento não deixou arrefecer durante o esfriar da noite.

« — Tomás!...»

e eu arrasto-me até à casa de banho, o chão frio da tijoleira refresca-me, e antes de te passar a toalha vejo-te para lá das cortinas de braços elevados, mãos esfregando a cabeça e pelo baço do tecido a silhueta farta dos teus seios, consigo imaginar até a espuma escorrendo ao longo da tua pele que tem o tom de canela, a água pingando indolentemente dos poucos pêlos púbicos que deixaste ficar.

Ao mirares-te no espelho amplo que reflecte a luz dos teus olhos claros, fazes o mesmo movimento de braços, desta vez escovando os cabelos ainda húmidos que rebeldes teimam em dispersar-se sobre os teus ombros, e logo tomo os teus seios nas minhas mãos abraçando-te pelas costas, sentindo esmagar-me nas tuas nádegas enquanto sorris languidamente e me entregas o pescoço para o beijar.

Ao ergueres o queixo, fechares os olhos e pelos lábios entreabertos escapar um suspiro sem ais, sei que não vou conter-me e excitado penetrar o líquido permanente que há em ti, sem perceber onde fui encontrar forças para o voltar a fazer ou até se sobreviverei à intensidade do deleite que nascendo, crescendo e soltando-se violentamente sem rédea me faz duvidar que seja terrestre.

Já dei por mim a ensaiar as palavras com as quais quero confessar-te que já não aguento, ainda que bom o caminho para a loucura, o trópico do teu sexo esvaziou-me, mais do que o corpo a mente que deixou de ser capaz de criar.

Mas sempre que regressas toco e desejo a mulher que explode de ti, mimo as iguarias com que me delicias e paradoxo-me na hesitação das frases que então faço por esquecer, ansiando que o paraíso de sensações jamais termine.

Aliás, já nem sei bem em que pensar; num instante tenho pouco tempo e vontade de permanecer neste lugar, para logo me sentir refém da mão que sabiamente me aprisiona e da boca que subtrai o pouco de mim que ainda resta...

terça-feira, abril 10

Mata Hari


Quem és tu desconhecida
Saída detrás de um véu que ora abandonaste
Que me enrolas num beijo de canela e mel
Quem és que me chamas teu doce
Que chegas e me possuis sem aviso
Mulher linda e sedutora que me invade a mente sem pudor
E sem pudor me excita os sentidos
Percorres o meu corpo sem estares presente
Quem és tu que me inspiras
Que me fazes suspirar na ausência do teu toque
E mais ainda na presença dele
Que me embalas no ritmo cadenciado das tuas ancas
Quando sobre mim danças
Quem és tu que me enlouqueces no grito sem palavras que soltas
E te esvaís em espasmos longos e desprotegidos
Que requerem o abraço
O beijo
O afecto
Quem és…
Quem és…
Porque despertas de novo, tão rápido
A paixão fremente nos corpos
Quem és…
Como chegaste…
Quando voltas…

sexta-feira, janeiro 5

Marquise com vista sobre a churrasqueira!

Querida, sei que, logo à noite, quando chegar a casa e te encontrar à volta das panelas lamentando o teu dia, irás mais uma vez fazer-me queixas dos disparates do Leonardo, do Lúcio e da Laura

(e eu, como sempre, a tentar lembrar-me porque raio os nomes dos nossos filhos começam todos por «éle»!)

e também do primo Luís

(será de família?),

que veio passar o verão connosco a Mem Martins, da vizinha de cima que voltou a estender roupa a pingar, ou do militar do andar ao lado que arranjou novo companheiro, irás voltar a dizer-me que o grelhador eléctrico, comprado em saldo no Feira Nova e no qual tentas com afinco assar sardinhas no estendal da roupa, não funciona bem, e eu ficarei a pensar que os problemas do meu dia são pequeninos e insignificantes ao pé dos teus.
Porque não me apetecerá contar-te que o meu chefe gritou mais uma vez comigo ou que as contas da empresa andam mal, que provavelmente nem irei ter subsídio de férias e que oxalá o ordenado não se atrase, senão a prestação das três assoalhadas com marquise

(como raio cabemos cá todos?)

está em risco, e tu querias tanto uma máquina de lavar roupa nova, igualzinha àquela que viste no folheto que deixaram na caixa do correio e que a tua irmã já tem, e eu sem ver outra alternativa senão irmos à praia de autocarro, porque o nosso Fiat Uno ainda não passou na inspecção e o meu irmão não está cá para arranjá-lo.
Não te quero preocupar com isso amor, mas também não sei de mais nada para conversar contigo. Não tenho nenhum colega que se tenha divorciado recentemente por ter sido apanhado com a cunhada a fazer nudismo no Meco e tão pouco te interessaria saber que roubaram outra vez os espelhos do elevador do prédio onde moramos. Como não ligas ao futebol, como certamente não te interessa saber que o meu computador no trabalho não se entende comigo e tenho que fazer as facturas à mão, irei permanecer calado, depois de ter dado um beijinho na bochecha corada e escutarei o quanto te correu mal o dia, pois tenho a certeza de que te continuarás a queixar mesmo quando eu fugir para a marquise onde os miúdos dormem, e eu:


«— Sim ?»
«— Tchee!...»
«— Não me digas...»,


já sem te escutar bem, tentando ganhar espaço para abrir a janela e mergulhar num cigarro porque tu não gostas do cheiro em casa. Já vi que os miúdos têm pósteres novos na parede e nas janelas, é engraçado que eles têm um ar menos chocante do que aqueles que eu tinha no meu quarto quando te conheci no secundário. Quantas vezes me apetece confessar-te que tenho saudades desse tempo, se calhar são apenas saudades dos sonhos que então tínhamos, até tu engravidares e o teu pai me obrigar a casar contigo.
Como sempre dirás aos gritos que eu estou muito calado, que não te ligo, que me fecho,


«— Se calhar arranjaste uma amante ou andas embeiçado por uma colega...»,


altura em que eu fujo para o café, para beber uma última imperial ou para a casa de banho para ler o resto da Bola.
É por isso querida, que eu gosto de ver um filme contigo na sala, naquela televisão que comprámos no último Natal, com écran grande mas de marca branca porque era mais baratinha. Normalmente, logo a seguir à telenovela, tu aconchegas-te no meu ombro, indiferente ao barulho do modem e do teclado do computador, porque os putos estão num chat qualquer a destilar hormonas

(tivemos que meter o computador na sala, sei que não gostaste,
mas não havia mais espaço),

não tarda adormeces cansada, com um pouco de sorte ficas em posição de não ressonar, e eu poderei fazer-te festas no cabelo, ficamos tão bem em silêncio sem ter que te explicar aquela parte do filme que não percebeste, a pensar como és bonita, tão bonita como no dia em que te conheci, que gosto tanto de ti, e que, se o tempo ajudar, vamos à praia este fim de semana, sozinhos, porque não dizemos aos rapazes, que preferem ir para a outra banda, nem à Laura, que arranjou namorado novo e que a mim não me parece de confiança,

(eu sei... já me esqueci de quando era novo e namorávamos...)

e, a seguir, até podíamos ir aquela churrasqueira baratinha, que faz um frango tão bom e que nos diz tanto, pois foi lá

(será que ainda te lembras?)

que me disseste que estavas grávida! Que achas?

quinta-feira, janeiro 4

O decote que desconheço...


Percebi que o nosso casamento realmente não estava bem

(é verdade, já andas a dizer-me isso há muito tempo...)


quando dei por mim a apreciar distraído o decote daquela amiga provocante da nossa filha, corei de embaraço ao subir o olhar e cruzar com o dela trocista

(senti-me o Spacey na «Beleza Americana» lembras-te? Foi o primeiro filme para «gente grande» que fomos ver com os miúdos)


e, como ele, percebi que não era tão só o desejo por ti que tinha morrido, mas a vontade de viver que desaparecera não sei quando

(não sei precisar, se calhar depois dos miúdos terem nascido ou então mais tarde, quando eles começaram a não querer sair connosco e já tínhamos desaprendido de o fazer só nós dois)


e não é por não seres ainda uma bela mulher, aliás, mais linda do que nunca, mais serena, mais madura, mais inteligente, eu é que não sei falar contigo, perco-me nas palavras e no interesse, já não temos mais conversas que nos apaixonem, interesses comuns, desejos para partilhar.
Alheei-me, bem sei, primeiro comecei a sair sozinho, depois com os amigos, uns de ocasião outros com quem partilho tanta coisa,

(não, não é só o futebol e mulheres, sabes?, falamos de muitas coisas, das frustrações do trabalho e sei que eles me entendem por sentirem o mesmo, dos problemas em casa não falamos como às vezes fazes com as tuas amigas, mas os homens não são assim)


deixámos de ir ao cinema, jantar fora, passar fins de semana a passear, fomos perdendo até amigos comuns, mas eu não percebi, não percebi até que já não fazemos amor há muito tempo, trocamos apenas um beijo rápido pela manhã quando nos despedimos ou à noitinha quando nos encontramos. E já nos encontramos muito pouco, acho até que nos portamos como dois estranhos que partilham a mesma casa, geralmente só falamos quando temos uma conta imprevista para pagar, já nem discutimos o que vamos dar de presente aos miúdos no Natal ou nos anos

(afinal eles já sabem o que querem e nem se fala mais nisso)


e não sei se o que custa mais é já não ser surpreendido quando, nas mesmas datas, me ofereces qualquer coisa, se o mesmo desinteresse que sinto quando compro qualquer coisa para ti.

(no princípio ainda comemorávamos aquelas «datas especiais», quando começamos a namorar, o dia do nosso casamento, até aquele dia mágico em que juntos perdemos a virgindade)

Já não me lembro do que te ofereci da última vez, espero lembrar-me a tempo de não repetir o presente e tenho ainda na gaveta o pijama que me deste no último Natal. Nunca te disse mas não me sinto bem nele, está um pouco apertado, na altura nem liguei muito, afinal nos anos tinhas-me dado um parecido e, esse, ainda está bom.
A ti tudo te serve, estás cada dia mais linda e mais jovem, depois de teres engordado um bocadinho quando os miúdos eram pequenos, voltaste a ter cintura e o teu peito bem feito a recortar-se nas blusas justas de decotes abertos, em vez daquelas camisas com patinhos que dantes colocavas fora das calças.
No princípio ainda me preocupei, porque tu tinhas um chefe novo na empresa que te andava a chatear

(apresentaste-mo uma vez, ainda te lembras?, na altura discutimos se os olhos dele eram verdes ou cinzentos e tu não gostaste quando te disse que parecia simpático)

mas, depois,

«— parece que ele até é bom e tem boas ideias»

e tu começaste a gostar e a trabalhar mais, o trabalho a aumentar e a obrigar-te a sair mais tarde para não acumular, às vezes até ao fim-de-semana o que para mim era bom, porque assim não me chateavas tanto quando saía com os meus amigos.

«— Divertiste-te?»,
perguntavas-me, mas eu sabia que já nem ouvias a minha resposta, por isso passei a encolher os ombros, esse gesto tornou-se até a única coisa que fazemos juntos.Mas fiquei preocupado, sabes?, porque tu estavas cada vez mais magra e a tua cara parecia cansada, mesmo se o disfarçavas com um sorriso que às vezes me parecia triste, outras vezes forçado.

(não andavas a alimentar-te bem, dormias pouco e dormias mal, cada vez conversávamos menos e, quando o fazíamos, era sobre o teu entusiasmo com a empresa e eu tinha vergonha de te confessar os desapontamentos com a minha, esperava até o puder fazer com a malta).

Voltaste a usar vestidos,

(até saia!,)

uma vez arriscaste mesmo uma blusa que te deixava o umbigo quase à mostra, lembro-me de rir e de te perguntar se ainda tinhas idade para isso, saíste porta fora e parece até que ainda a estou a ouvir bater. Fiquei furioso e nesse dia quis chegar tarde, demorei-me propositadamente no café até o nosso filho me telefonar e perguntar

«- estás bem Pai?»

regressei a casa e tu chegaste logo a seguir, porque nesse dia um fornecedor se tinha atrasado, não falámos, não discutimos, não me disseste nada, fizeste de conta que eu não existia e só quiseste saber como estavam a correr os trabalhos dos gémeos na escola. Deitaste-te logo de seguida, porque te doía a cabeça e eu fiquei a ver televisão, a tentar ouvir o som por cima do barulho da máquina de lavar loiça, aquilo irritava-me mas adormeci no sofá a ver novela,

(imagina!,)

até te sentir, já de madrugada, a desligar a televisão e a pôr-me um cobertor sobre os ombros.
Fingi que estava a dormir, não queria discutir, mas, para te falar verdade, naquela altura o que me apetecia mesmo era puxar-te para mim, rebolar contigo no chão e fazermos amor intensamente, da mesma forma que fazíamos quando nos casámos e morávamos naquela casa pequena que, pouco a pouco, fomos mobilando com os subsídios.
Não o fiz com medo da tua reacção e porque não queria parecer desajeitado, também não me apeteceu ouvir-te repetir que tinhas de acordar cedo por causa do trabalho ou que os miúdos podiam despertar com o barulho.
Tenho saudades desse tempo, quando tínhamos pouco mas nos tínhamos. Não sei porque nos afastámos, em que momento das nossas vidas começámos a agir como estranhos e porque o trabalho para ti parece tão importante. Para mim é estúpido que digas que ele te realiza, não entendo como isso pode acontecer, ter que ouvir e cumprir ordens, receber telefonemas do teu chefe a qualquer hora ou ter que chegar mais tarde. Eu, quando chego, estive a divertir-me com os meus amigos, estive a desancar nos meus chefes, está bem, às vezes até comentamos as formas de uma qualquer miúda com que nos cruzamos.
Agora… agora, de repente, não sei o que sinto, ao olhar para o decote da amiga da nossa filha percebi que o teu, pela manhã, quando te sentas fresca e cheirosa a tomar o pequeno-almoço, me é também profundamente desconhecido!